por Joana Emmerick e Sandra Quintela – Pacs
“Despertemos, despertemos humanidad! Ya no hay tiempo, nuestras conciencias serán sacudidas por el hecho de estarmos solo contemplando la autodestrucción, basada en la depredación capitalista, racista y patriarcal. La Madre Tierra militarizada, cercada, envenenada, donde se violan sistemáticamente los derechos elementales, nos exige actuar.”
“Construyamos entonces, sociedades capaces de coexistir de manera justa, digna y por la vida. Juntémonos y sigamos con esperanza defendiendo y cuidando la sangre de la tierra y los espiritos”. [1]
Berta Cáceres
Às vésperas do dia 8 de março, dia internacional de luta das mulheres, nos deparamos com a terrível notícia do assassinato de Berta Cáceres Flores, em Honduras. Bertita, como era chamada pelas/os companheiras/os, era uma liderança indígena, feminista, defensora da terra, da água e dos direitos dos povos. Base contundente na resistência ao golpe de Estado sofrido pelo ex-presidente Manuel Zelaya, em 2009, denunciando a mão imperialista dos Estados Unidos (na figura da então secretaria de Estado, Hilary Clinton, hoje candidata à presidência daquele país) e o avanço de suas bases militares na região.
Militante dos direitos humanos, Berta, especialmente no contexto pós-golpe, fez denúncias sistemáticas sobre as diversas violações de direitos vividas em Honduras, sobre a criminalização dos movimentos populares, como o Consejo Cívico de Organizaciones Populares e Indígenas de Honduras (COPINH) [2], do qual era coordenadora; e, tragicamente, do extermínio crescente de lideranças de seu povo, Lenca, por forças armadas paraestatais, como as que, se suspeita, a vitimaram.
O chamado das águas foi sentido por Berta e pelo seu povo, que continua a corajosa resistência contra o avanço de grandes projetos mineradores e hidrelétricos em seus territórios, especialmente na defesa do Rio Gualcarque, objeto da ambição desmedida da Empresa Hidroeléctrica DESA- SINOHYDRO e do Estado Hondurenho.
Berta vivenciava e denunciava os retrocessos na garantia de direitos frente ao avanço da direita e seus projetos de morte na América Latina. Grandes corporações transnacionais adentrando a cada dia por este solo sagrado, com a anuência dos Estados, expropriando vidas e sonhos. Corajosamente, gritou aos quatro ventos a relação entre a ofensiva extrativista com a crescente militarização dos territórios em Abya Ayala. O fazia sempre ressaltando que a violência inerente a estes processos é também sexista e racista. Cada pedaço de terra, cada pedaço de chão. Mas, nestes casos, os impactos sobre a vida das mulheres permanecem ainda silenciados. O protagonismo feminino nas frentes de luta também. Quantas lutadoras resistem aos grandes projetos de morte que avançam dia após dia na America latina e na periferia global? Lutadoras incansáveis, invisibilizadas posto que se movimentem nas agruras e nos subterrâneos da disputa por controle dos territórios.
Cotidianidade da luta
Para vermos estes impactos precisamos olhar além. Precisamos compreender uma dimensão do todo que envolve as vidas no cotidiano. A conformação das condições de vida cotidianas de quem habita os territórios. Cotidiano é o que fazemos todos os dias para viver e sobreviver: é o que comemos, a água que bebemos, o trabalho da casa e da rua, as filhas e filhos que cuidamos, a horta que plantamos, a casa que moramos, os trajetos que fazemos, as relações sociais em que nos inserimos. Cotidiano é o Rio Gualcarque que querem destruir, em Honduras, é o Rio Madeira, em Rondônia, é a Baía de Sepetiba, no Rio de Janeiro. É onde se come, de onde se tira o sustento. É o transporte para casa, é o casamento, é o amor, é o sexo. Cotidiano é onde nos situamos, enquanto sujeitas de corpo, mente e espírito. Socialmente as mulheres são responsabilizadas pelos cuidados, protagonizando a cotidiana garantia de produção de vida. E, não à toa, estão na linha de frente de tantas destas batalhas.
Berta Cáceres era e é todas nós. Como disse recentemente sua companheira de lutas, Miriam Miranda, Berta vive em todos os espaços de luta, são milhares de Bertas por aí a lutar. Bertita era uma grande liderança, reconhecida internacionalmente, protegida por uma série de organizações de direitos humanos. Ainda assim, ela não foi assassinada em um comício, em uma passeata, como tantas figuras públicas, masculinas, na história. Berta foi assassinada em sua casa, em sua cama. Lugar onde tantas outras Bertas são violentadas e assassinadas todos os dias. Há uma forte mensagem embutida em seu assassinato, ela é direta e é entendida desde nosso sentir feminista. A violência contra nossos territórios é mais uma expressão da violência sobre nossos corpos. A violência contra nós, mulheres, é resultado da correlação de forças no quadro de disputas por controle territorial. Não retrocederemos! Continuaremos a lutar e a expor que a violência que nos atinge é instrumental para os avanços do capital patriarcal, racista e colonial!
No final de 2015, Francisca das Chagas Silva, mulher negra, quilombola, lutadora do campo e sócia do Sindicato de Trabalhadores Rurais de Miranda do Norte, no Maranhão, foi brutalmente assassinada com sinais que deixavam claro, à nós, mulheres, uma mensagem de subjugação sexual. Um mês antes de ser assassinada, Francisca, margarida, marchava pelas ruas de Brasília junto a tantas outras flores, trabalhadoras do campo, da floresta e das águas, além das trabalhadoras das cidades, que ocupavam as ruas demandando um processo de desenvolvimento democrático, com garantia de igualdade, liberdade, autonomia e justiça. Nilce de Souza Magalhães, Nilcinha, era pescadora, ribeirinha, militante pelo Movimento dos Atingidos/as por Barragens (MAB) em Rondônia e desapareceu semanas depois do assassinato de Francisca Margarida. Desapareceu de sua casa, enquanto cozinhava o almoço e lavava a roupa. Nilcinha era uma liderança local contra as Hidrelétricas de Santo Antonio e Jirau em defesa da vida, do rio e da floresta, vivia na beira do rio Madeira, de onde lutava para jamais sair.
Dois assassinatos ocorridos em territórios disputados pelo capital, expressando-se na mineração/siderurgia e hidrelétricas, no Brasil. Afinal, Honduras é aqui. Projetos absolutamente fálicos, pelo simbólico masculinista que mobilizam em sua imponência e na finalidade de suas atividades. Grande parte dos produtos resultantes da atividade mineradora/siderúrgica, por exemplo, são destinados a alimentar a guerra contra os povos que resistem, como a arma que matou Berta. Tais atividades implicam impactos concretos na vida das pessoas nos territórios que usurpam – fortalecimento das redes de exploração sexual e infantil, do tráfico de mulheres, desarranjo do tecido social cotidianamente costurado pelas mulheres, expropriação de terra e saberes, precarização e destruição de formas alternativas de produção de vida, entre outros. Sua instalação se dá em territórios que apresentam altíssimos índices de violência urbana e contra as mulheres, especificamente. Grandes projetos que compõem quadros de violência estrutural exacerbada, seja no contexto da superexploração de trabalhadores/as que logo se reverte também em necessidade de afirmação de seu poder sobre corpos femininos e feminizados, seja na relação que estabelecem com corporações armadas estatais e paraestatais que se beneficiam das novas economias informais, atuando como importante força social disciplinadora, reproduzindo a normativa conservadora própria à formação militarista.
Estes são apenas exemplos sobre como um grande projeto de desenvolvimento “feminiza” o território para seu controle, subjugando todas as forças e expressões históricas que o conformavam e gerando um efeito em cadeia de subordinações. Os corpos das mulheres e outros corpos feminizados estão implicados, estes corpos vão sendo marcados. Não se trata aqui de um exercício de pensamento abstrato, trata-se da vivência e das ameaças que se impõem quando a violência sobre o corpo é expressiva das dinâmicas da batalha, quando o controle sobre estes corpos é extensivo ao controle do território, ainda que de forma informal e silenciada, obstaculizando a reprodução de outros projetos de vida, individuais e coletivos.
O que dizer das mulheres nas favelas e periferias das grandes cidades que sofrem o controle disciplinador, todos os dias, por forças militares estatais e paraestatais? Há dois anos, Claudia Silva Ferreira, foi assassinada pelo Estado, pela polícia – MILITAR – do Rio de Janeiro, na rua em que vivia, em Madureira, quando ia comprar o pão do café da manhã de sua família. Foi arrastada ainda viva, por um camburão, pelas ruas da cidade Olímpica. A cidade nada maravilhosa que a cada dia é fracionada, reforçando o apartheid social existente, assume a guerra como forma de vida. A guerra contra o povo trabalhador, negro, que insiste em respirar e insurgir nas favelas e periferias da cidade. Verdadeiros quilombos que não diferem da resistência do povo Garifuna, em Honduras, ao avanço do projeto de Cidade Global que expropria seus territórios para construção de grandes complexos hoteleiros. Não se dissocia tampouco da luta histórica do povo haitiano, agora laboratório de preparação das forças armadas brasileiras para a ocupação militar de “pacificação” que se iniciou no Rio de Janeiro.
América Central: espelho do que pode estar vindo
A América Central é um termômetro para nossas lutas na América Latina. A ofensiva contra os povos lá não se reveste sequer da hipocrisia dominante por estes lados. Atentemo-nos para isso. A América Central somos nós todos os dias e nós somos elas e eles também.
E são as batalhas do dia a dia mais comum, inaudível muitas vezes, invisibilizadas na história, os espaços onde mesmo aquelas lutadoras que logram ressonar suas vozes em outras escalas, são caladas, silenciadas, lembrando a todas nós o lugar ao qual fomos destinadas. O capitalismo avança a cada dia é na terra em que pisamos. O poder do grande capital se materializa, se enraíza, e nos mostra suas expressões fálica, racista e terrivelmente violenta nos interstícios da vida vivida. Um horizonte difícil se mostra no fim do dia.
É preciso olhar o cotidiano, aprendermos daí potencialidades de ruptura com a repetição, com o sistemático, aprendermos com aquelas que encontram brechas e, juntas, se recusam a subordinação. Escavadeiras incansáveis criam túneis e se movimentam nesta terra. Esta criação política que, de chão a chão constrói territórios coletivos insurgentes, abre e sustenta possibilidades de co-inspiração.
Berta Cáceres, Francisca das Chagas Silva, Nilce de Souza Magalhães, Claudia Silva Ferreira, tantas outras que alçaram voo, pelas outras que seguem marcando caminhos. Suas lutas, nossas lutas, não serão em vão. Carregamos no sangue a urgência. Uma urgência histórica. A sociedade nos impôs sermos “guardiãs” da terra e da vida – todos os dias lutando pra alimentar sua gente, ter um teto sob o qual dormir, garantir sua saúde, seu bem estar, água pra beber, pra se banhar – não imaginavam a radicalidade que isto nos imporia, necessariamente. Radical é raiz, o que sustenta caules e troncos, mesmo que invisibilizada. As raízes são fundamentais na definição dos sentidos em que crescem as folhas e as copas das árvores, sustentam também sua milenar resistência. É preciso apropriar-nos dessa força para avançar.
No dia 8 de março de 1917, as mulheres russas foram às ruas demandando pão, demandando condições de vida dignas, e marcaram o estopim de uma revolução. É preciso ler este momento a partir de nossas trajetórias. Resgatemos, relembremos, imaginemos, na difícil conjuntura do 8 de março de 2016, nossa história de lutas populares na America Latina. Projetemos os tantos protagonismos femininos enraizados nas lutas de base. Temos algo que nos é próprio. Raízes, água, terra e saberes. Ou, nas palavras da própria Berta Cáceres: “En nuestras cosmovisiones somos seres surgidos de la tierra, el agua y el maíz”. Mulheres, como Berta, que nos inspiram todos os dias à construção histórica e ancestral de nossa força coletiva e insurgente. Aconteça o que acontecer, valerá a pena.
Berta Cáceres, presente!
Francisca das Chagas Silva, presente!
Nilce de Souza Magalhães, presente!
Claudia Silva Ferreira, presente!
Agora e sempre! Agora e sempre!
A luta segue!
[2] A própria Berta tendo sido presa pelo governo autoritário de Honduras no contexto pós golpe.