Quando milhões de pessoas foram às ruas em 2013, a primeira reação dos autoritários encrustados em mídias, governos, tribunais e aparelhos de segurança foi reprimir brutalmente as manifestações civis, não dar ouvidos ou visibilidade às demandas sociais e políticas que elas traziam, não condenar os abusos e violências contra cidadãs/os.
Diante da hegemonia momentânea de movimentos sociais que atordoaram a grande mídia e acuaram governos, vendo o povo apoiar os manifestantes apesar de toda campanha contrária, o autoritarismo jogou sua primeira isca: plantar o ódio através da violência policial e da manipulação. É óbvio que cansados de apanhar e ser caluniados, alguns manifestantes reagiriam. A mídia televisiva apostou então na narrativa da violência – horas de manifestações mal aparecem, não se ouve as palavras de ordem, mal se vê as faixas, a interação com os transeuntes, nada disso. Mas há espaço farto para os confrontos desencadeados pelas dispersões violentas empreendidas pelas polícias. Com certeza se gastou mais com gás lacrimogênio do que com muitas políticas sociais. E em meio à fumaça a mídia “cria” os black blocs – até então irrelevantes em número e influência. Muitos jovens indignados morderam a isca, vestiram-se de preto e entraram no jogo de falar pela violência, já que as palavras são ignoradas. Finalmente a globo conseguiu influenciar os rumos do processo e sua base foi justamente os “black blocs”. Mesmo quando quem reagia à violência policial não tinha nada a ver com as ideologias que adotam tal tática, todos foram assim rotulados, inclusive os policiais infiltrados flagrados a jogar coquetéis molotovs.
Com a narrativa da violência, buscou-se afastar as pessoas pelo medo. Mas mesmo sem ir às manifestações, a maioria continua a apoiá-las – é óbvio, nada mudou, por que mudariam de opinião? Então, a nova isca: aumentar a intensidade de ódio. Repressão e calúnias diárias até conseguir o seu objetivo maior, concretizado na morte de um cinegrafista. Agora a isca é para os políticos em ano de eleição: ganhar visibilidade midiática com leis duras para fazer o que as políticas públicas não fizeram – acalmar a população. Para que uma lei penal a tratar manifestações. Por que uma conduta já tipificada no código penal receberá uma pena mais dura quando praticada numa manifestação do que no carnaval, num jogo de futebol, ou no dia a dia? O que é “desordem pública” e por que as pessoas que se juntam para protestar serão tratadas com mais rigor do que formação de quadrilha?
A criminalização (um manifestante poderá pegar pena maior que um homicida) tem como objetivo principal o niilismo. Fora das ruas, frustradas, as pessoas simplesmente desistem de querer mudar o país. Os insistentes serão encarcerados. E não serão os tais vândalos, pois a polícia prende sem critério, aleatoriamente, forja provas, como vimos largamente em 2013. Isso alguns esquecem: a maioria das prisões são injustas, são brasileiros presos por uma máquina repressiva voraz que trata todos os manifestantes como inimigos, independente do seu comportamento. Vem então o segundo efeito do niilismo: a violência política. Se pequenos grupos morderem a isca, responderão à criminalização através da linguagem da violência, já não mais nas manifestações que estarão esvaziadas pelo medo. E é isso que os autoritários querem – uma nova guerra desigual contra vanguardas que, encurraladas, partem para o enfrentamento martirizante, “justificando” leis draconianas e mais militarismo.
Assim é mais fácil governar: ao invés de democratizar as cidades e as instituições, encarcera-se aqueles que protestam. Aí está o verdadeiro foco da escalada autoritária – moradores de bairros que se revoltam contra violência policial ou descaso do poder público, populações e movimentos que lutam por transporte público e de qualidade, movimentos e comunidades que lutam por terra e moradia, sindicalistas, ambientalistas e outros ativistas que promovem lutas por direitos. E pessoas e famílias de todas as classes e setores sofrerão, pois o autoritarismo traz essencialmente isso: sofrimento!
A importância dos movimentos sociais.
Nesse cenário é obrigação dos movimentos sociais de luta assumir a linha de frente da história. Alguns lutadores vacilam diante de ilações do tipo: manifestações na copa, ou no ano desta e das eleições, beneficiam a direita. Ora, a direita está nos governos despejando, devastando, aprovando leis anti-populares, prendendo e espancando quem luta.
O fato de milhões de brasileiros não caírem no engodo da copa foi uma grande vitória dos movimentos que lutam pelo direito a cidade. O pacote do capital atrelado ao megaevento é de negação do direito a cidade, é segregador, autoritário e violento. Compreender isso e derrotar politicamente a copa da fifa (ela ocorrendo ou não) é uma enorme vitória subjetiva do poder popular, perante a enorme derrota material para as populações das cidades, e pode colocar as disputas sociais urbanas em outro patamar. Isso é disputar hegemonia. Ao mesmo tempo, tentamos minorar ou reverter os prejuízos aos atingidos diretos (os removidos, p.ex.) e indiretos (as populações em geral).
O que está em jogo é o modelo de cidade: a do capital onde ela está a serviço do lucro; ou a cidade democrática com qualidade de vida pra quem nela vive. Também o modelo político: o das decisões concentradas a serviço das elites, autoritário e repressor; ou uma democracia viva, onde as populações têm poder de decisão sobre os rumos da cidade e do país, onde as lutas por direitos não sejam criminalizadas e a política militarizada.
Em 2013 os movimentos sociais tiveram papel central para desencadear as manifestações e para garantir a auto-harmonia destas. Mesmo diante da brutalidade da polícia e da revolta que ela gera, garantiu-se um nível elevado de pacificação muito acima da média brasileira, graças à postura ativa de milhares de militantes sociais que sabiam bem o que estavam fazendo. E o mais importante: os movimentos garantiram na rua o encontro de uma sociedade segregada, como raras vezes na se vê no Brasil.
Daí a responsabilidade dos movimentos sociais se articularem desde agora para elevar o ânimo e qualidade das manifestações que ocorrerão, com razões de sobra, durante a copa. Para que fique claro que o povo está nas ruas lutando pela democratização das cidades e da sociedade, para que megaprojetos não atinjam mais populações, que se pare de vez o massacre dos pobres nas periferias, para que a resposta dos governos seja com medidas democratizantes e inclusivas, e não com mais repressão e violência.
Por Igor Moreira, membro do Movimento dos Conselhos Populares-MCP e da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares – RENAP.