Já virou rotina. Depois de mais uma campanha eleitoral onde a candidatura do lulismo ataca a direita e denuncia banqueiros – como o mal maior a ameaçar direitos e conquistas dos trabalhadores – o ato imediato protagonizado por suas lideranças é a celebração de acordos com o mercado financeiro, para garantir o que se chama de “governabilidade”.
Em 2002, o acordo foi audacioso: a campanha vitoriosa, que levou a esperança a vencer o medo, foi buscar em Washington o armistício, anunciando na capital do Império o nome de um alto executivo do BankBoston, um de seus ex-presidentes e deputado eleito pelo PSDB, Henrique Meirelles, para o comando do Banco Central (BACEN). A esperança, portanto, ficou no passado da campanha e o temor, ou insegurança, predominou.
Em 2006, o nome do banqueiro tucano foi o primeiro a ser confirmado para continuar na equipe de Lula, já como ministro, pois Lula a ele conferiu esse privilégio, no seu primeiro mandato, elevando o status do presidente do Banco Central a essa posição, por um motivo bizarro: permitir que o cidadão obtivesse o chamado foro privilegiado do Supremo, pois Meirelles havia sido acusado pelo Ministério Público por crimes fiscais, falsidade ideológica e evasão de divisas.
Em 2010, Dilma Rousseff decidiu, finalmente, substituí-lo na montagem da sua equipe de governo. Mas, em seu lugar, ficou um dos seus diretores no BACEN e seu pupilo, Alexandre Tombini. Não sem razão – e apesar da conjuntura internacional ainda se ressentir da crise financeira de 2007/2008 – a primeira medida adotada pelo novo presidente foi dar início a um novo ciclo de elevação da taxa Selic, medida absolutamente na contramão do que se poderia imaginar como razoável para um governo que se autorrotulava como neodesenvolvimentista.
Agora, em 2014, e buscando recuperar o que se chama de credibilidade junto aos mercados, a ideia inicial foi convidar o presidente do Bradesco, Luiz Carlos Trabuco, para o comando do Ministério da Fazenda. O convite não foi aceito. O Bradesco prepara Trabuco para ser o próximo presidente do seu Conselho de Administração, sucedendo a Lázaro Brandão e priorizando o seu valioso quadro para a sua própria instituição. Porém, o banco não deixou Dilma na mão: indicou para o posto um de seus funcionários de confiança, Joaquim Levy. Secretário Nacional do Tesouro, na gestão do primeiro mandato de Lula, e ex-integrante da equipe econômica de Pedro Malan, na gestão de FHC, o economista parece se encaixar no figurino desejado por Dilma para o posto de novo comandante da área econômica.
Considerado um economista ortodoxo, caberia a Levy dar início a um processo de ajuste fiscal, em combinação com a manutenção e ampliação do atual ciclo de elevação da taxa de juros, conforme vem sendo sinalizado pelo Banco Central. É a velha fórmula do contracionismo fiscal e arrocho monetário, como medidas para o relançamento posterior da economia, a partir desta freada de arrumação. A ideia é preservar as regras do jogo da abertura financeira e fortalecer os grupos financeiros que se beneficiam da transferência de renda embutida no processo de rearrumação das contas públicas, em prol especialmente dos credores da dívida pública.
A incógnita dessa estratégia é como enfrentar a necessidade do ajuste cambial, através da desvalorização do Real. Sob o regime de câmbio flutuante, a elevação da taxa de juros estimularia a entrada de divisas, em um momento onde novamente deveremos fechar o ano com um déficit em conta corrente em torno de US$ 80 bilhões. Contudo, é crescente a pressão de setores exportadores e industriais por uma correção da taxa cambial.
Nesse sentido, o anúncio, não confirmado, dos nomes de Kátia Abreu, para o Ministério da Agricultura, e de Armando Monteiro Neto, para o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio, reforça a ideia da formação de um ministério que traga para o seu interior os diferentes interesses da elite econômica dominante, que se beneficia do atual modelo econômico. Armando, senador pelo PTB de Pernambuco, já ocupou a presidência da Confederação Nacional da Indústria, e Kátia, também senadora, por Tocantins, é a presidente da Confederação Nacional da Agricultura e uma espécie de liderança maior do agronegócio. Divergências e a necessidade de ajustes que possam surgir, portanto, na implementação da estratégia em curso, deverão, a depender da vontade de Dilma, ser resolvidas no interior do próprio governo.
Surpresa?
Quem não vem gostando nem um pouco dessa arquitetura política e da estratégia econômica em formulação são os signatários de um manifesto recém lançado, subscrito por intelectuais e lideranças sociais do campo lulista. O manifesto Em Defesa do Programa Vitorioso nas Urnas tem todo o direito, a partir do papel que esses setores desempenharam na vitória de Dilma, de reivindicar e pressionar por mudanças políticas e econômicas.
Entretanto, não pelos argumentos falaciosos apresentados. Na sua abertura, por exemplo, é destacado que “a campanha presidencial confrontou dois projetos para o país no segundo turno. À direita, alinhou-se o conjunto de forças favorável à inserção subordinada do país na rede global das grandes corporações, à expansão dos latifúndios sobre a pequena propriedade, florestas e áreas indígenas e à resolução de nosso problema fiscal não com crescimento econômico e impostos sobre os ricos, mas com o mergulho na recessão para facilitar o corte de salários, gastos sociais e direitos adquiridos”.
Somente aos que se deixam levar pela marquetagem oficial ou pela irracionalidade passional que tomou conta do país, especialmente no segundo turno, pode simplificar o embate político que vivemos dessa maneira.
Quem nos últimos doze anos aprofundou a inserção subordinada do país ou a expansão dos latifúndios do agronegócio, sepultando qualquer traço de estratégia nacional séria para atenuar nossa dependência econômica e nosso subdesenvolvimento, foram os governos de plantão. Quem renunciou a qualquer pretensão mais séria de reverter o processo de desnacionalização do nosso aparato produtivo, implementar uma política industrial de substituição de importações ou reformas estruturais como a agrária, a agrícola, a tributária ou a fiscal, incluindo o rompimento da subordinação da administração da dívida pública a uma irresponsável política monetária, foram os governos presididos por Lula e Dilma.
Mesmo se levarmos em conta os ditos apoios aos dois candidatos que disputaram o segundo turno, vamos observar que a elite econômica dominante se dividiu e, sob o ponto de vista financeiro, com vantagem para a candidata à reeleição.
Portanto, reforçar a falsa ideia de dois projetos em disputa é lamentável e deseducativo. Mantém a mitificação e a impostura de caracterizar o pacto social implementado pelo lulismo, em torno do modelo dos bancos e multinacionais, como neodesenvolvimentista, capaz de distribuir renda ou sustentar uma política externa independente.
A verdade que esses setores – que se dizem de esquerda, mas prestam um vassalo apoio aos governos de plantão – não querem enfrentar é a necessidade de rompimento com o lulismo. Enquanto esse movimento não se der, manifestações de crítica ou descontentamento pontual tenderão a cair no vazio. O vazio do oportunismo e da indigência ideológica e política de uma esquerda que se perdeu.
Paulo Passarinho é economista e apresentador do programa de rádio Faixa Livre.

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