Por Miguel Borba de Sá (PACS)
O bom da política é que ela nunca acaba. Bom para nós, de esquerda, que estamos sempre perdendo e seguimos perdendo, hoje em dia mais do que nunca.
Ninguém de bom senso ou bom caráter socialista afirmaria que, no Brasil, a esquerda está avançando nos últimos vinte anos. Os anos 1990 neoliberais e os anos 2000 da “traição” do PT e da CUT, da degeneração final da UNE e das contradições vividas pelo MST nos impedem de, na esquerda radical, termos muito para comemorar nas últimas décadas. Até aí nenhuma novidade.
A novidade veio então em Junho do ano passado (2013). No começo do ano protestos que não ultrapassavam o tradicional teto de cinco, quiçá 10 mil pessoas começaram a ter uma persistência fora do comum. E eram protestos “nossos”, dos partidos da esquerda socialista, dos movimentos sociais mais combativos, dos sindicatos de luta. Protestos contra o aumento das passagens, coisa tradicional na esquerda. Bandeiras vermelhas, foices, martelos, estrelas. Mega-fones e palavras de ordem anti-capitalistas. Tudo como sempre conhecemos. Aliás, a gente se conhecia. Sempre conhecíamos, mais ou menos, todo mundo da militância, certo? Todo mundo que se encontrava em protesto, que se reunia antes para organizá-los, que tentava fazer debates na universidade ou na favela, que estava acostumado a se inscrever pra falar nesse tipo de reuniões. Enfim, nada de novo no front da nossa cultura política de caráter socialista – que muitos sempre afirmam como ultrapassada, mas nós teimosamente sentimos orgulho dela e acreditamos que é um patrimônio da luta histórica dos trabalhadores contra o capital.
A novidade é que ao longo do primeiro semestre de 2013 essas dinâmicas que geralmente tinham vida curta e tamanho restrito duraram mais do que o tradicional. Persistiram e mesmo cresceram frente aos já esperados ataques. Depois cresceram mais ainda, ganharam algum apoio na classe média, entre os trabalhadores e até a mídia em algum momento teve que – aparentemente – mudar de lado e apoiar os manifestantes. Realmente, isso era novo. E, de fato, não era por vinte centavos. Mas também não era só por “direitos” (à mobilidade urbana). Era de esquerda, era anti-mercado, anti-elites, anti-machista, anti-racista, anti-capitalista. Era bom.
E aí veio o dia dos cem mil, depois o dia do um milhão. Estranho? Bom, deveríamos ter achado bem estranho. Afinal, a Globo (rádio, jornal e TV) estava convocando as pessoas (a irem de branco) para o protesto. A Band e a Folha também. Assim como aqueles jornais gratuitos do metrô. Tentamos ignorar, mas a verdade é que a Veja também estava chamando para os protestos no meio da Copa das Confederações. O Itaú lançou comerciais falando em revolução, com imagem das passeatas e com slogan dizendo que “isso muda o mundo”. Mas não achamos estranho – ou não admitimos ter achado.
Fechamos os olhos para várias estranhezas, aliás. Nossos militantes começaram a ser perseguidos nas passeatas, depois agredidos, humilhados e até expulsos. Sim, expulsos do ato, mas não apenas pela polícia, mas dessa vez pelos próprios manifestantes, pelo “povo” na rua também. Aos gritos dominantes de “sem partido”, fomos acusados de sermos oportunistas. Justo nós, que começamos aquilo tudo! Alguns de nós resolveram resistir e levaram até porretes para se defender, outros marcharam de costas para não apanhar sem saber. No meu partido, a ordem geral foi pra não levar bandeiras. Ora, algo estava errado. Ou não? Se o momento era nosso, se os protestos eram “progressistas”, se as massas tinham elevado abruptamente seu grau de consciência, enfim, se o centro de gravidade político estava pendendo mais pra esquerda, por que diabos estávamos tendo que brigar – ou nos disfarçar – para pode ficar nos atos, para fazer o que sempre fizemos: marchar nas ruas. Por que?
Ninguém até agora me convenceu com nenhuma explicação de esquerda, que são as únicas que me interessam. Os cem mil passaram, o um milhão passou. E desde então parece que estamos todo dia na esperança de que retornarão na esteira do próximo ato contra a Copa, na próxima greve dos professores ou na próxima chacina na favela. Mas a verdade é que não voltaram. Nós saímos mais confiantes, com razão, mas as passagens aumentaram duas vezes, vários Amarildos continuam sendo mortos, as greves – com poucas exceções – tem sido derrotadas exatamente porque aquele um milhão não voltou mais para nos apoiar. Minha pergunta é: será que em Junho eles vieram mesmo para nos apoiar – ou já é hora de admitir que vieram para nos derrotar?
Estou certo de que se nós nos unirmos de novo (a questão das passagens foi um raro momento de união das forças de esquerda na era pós-PT), eles terão que encher a rua de novo também, cínicos como sempre são. Daí poderemos ter repentinamente cem mil, um milhão, ou até mais, novamente para tentar nos derrotar. Irão sorrateiramente afastar nossas pautas e voltarão com seu chavão “anti-políticos corruptos”, com seus gritos anti-partido, anti-sindicatos, anti-movimentos, anti-organização da classe trabalhadora. Cuidadosamente, vão desviar o foco dos empresários e culpar o Estado, nem que para isso precisem sacrificar as belas vidraças do Itamaraty. Tudo o que for preciso para que a multidão siga convencida de que é o governo em si o culpado de tudo. Tudo para que as vidraças da Bovespa continuem intocadas nos protestos, como estão desde Junho, até onde eu saiba.
Eles são a Globo e a Veja, claro, assim como a Febrabam, a Odebrecht e a CNA, mas também o Jabor, a Miriam Leitão e a Fátima Bernardes, que até oficina de cartaz para manifestação fez em seu programa durante o inverno passado! Ou seja, eles são os porta-vozes do capital, da burguesia, da classe dominante neste país, aqueles responsáveis por gerir a luta de classes – pois ela nunca acaba, como eu disse no começo. A disputa política entre as classes vai sempre existir enquanto houver capitalismo e nada indica que seu esperado fim esteja na próxima esquina, ou na próxima pedrada de algum black bloc em cima de um policial negro, cuja triste função é defender com amor o patrimônio dos brancos.
Desde Junho de 2013 a rua não encheu daquele jeito, por mais greves e enfrentamentos que tenhamos tido. Não encheu porque seguimos fragmentados, arrisco dizer, ainda mais do que antes. Não encheu porque não temos assustado tanto como assustamos com aquelas mobilizações contra a passagem. Cada um tentando ser o herdeiro político das ruas impediu que nós observássemos o óbvio, por mais desagradável que seja: não herdamos nada porque não poderíamos herdar algo que não nos pertence, ainda bem, pois não se tratava de algo de esquerda, nem socialista, muito menos revolucionário. Se havia algo de “popular”, era no sentido mais antigo dessa palavra, ou seja, da burguesia transformando seu ideal de liberdade no ideal de liberdade de todos, como alertava Sartre, em algum texto que já não me lembro qual.
A jornada de Junho era tão somente uma reação burguesa, vitoriosa por sinal. Eles sabem jogar o jogo dessa “democracia” muito bem, têm todos os meios para isso. Não vivem só de ditadura, apesar de muitos da classe dominante estarem sempre loucos por ela e apesar da vida na favela e nas fronteiras do agronegócio serem um verdadeiro estado de exceção. Por que se surpreender tanto com mobilizações de rua de caráter reacionário esmagarem nossa ascensão se sabemos que estamos exatamente numa democracia burguesa? Essa surpresa precisa passar.
A ilusão de que o povo iria, magicamente, um dia se levantar contra a hegemonia do capital, desfazendo em algumas horas o senso-comum sedimentado em décadas está custando muito caro.
A tentação daqueles que apostam na via eleitoral já mostrou-se frustrada: nem PSOL, nem PSTU ou PCB alteraram um por cento de suas projeções institucionais ou quadros partidários. De outro lado, a tentação daqueles que rejeitam o “eleitorismo” dessas legendas em prol de um grande levante de massas contra as classes dominantes sofre da mesma análise equivocada sobre o “progressismo” de Junho. Até onde sei, a FIP, os maoístas, os autonomistas, os partidos clandestinos e os movimentos sociais radicais tampouco estão conseguindo mobilizar mais de algumas dúzias de pessoas fora das “redes sociais” – bem pouco sociais, na verdade, pois o que mais se encontram nelas são indivíduos, em vez de classes, em vez da classe trabalhadora organizada. Por fim, algum anarquista consegue falar sério hoje sobre a possibilidade de uma “greve geral”?
Estamos todos, isso sim, mais divididos, mais críticos entre nós, mais convictos de que o problema é a organização de esquerda mais próxima.
Estamos botando a culpa em nós mesmos. Claro que o PT tem muita culpa nisso, mas não adianta ficar culpando a conversão capitalista do PT para sempre. Pelo menos eles cumprem o papel de dividir a direita também, depois de terem causado tanto prejuízo dividindo a esquerda. Mas e nós? Qual política vamos seguir?
Continuar nos fraturando a nós mesmos não pode ser a única opção de uma esquerda que se pretende socialista e revolucionária. Estamos mais divididos hoje do que já estávamos antes de junho de 2013. Esse tem sido o verdadeiro legado da Copa para as lutas sociais . Precisamos urgentemente reencontrar uma maneira de nos aproximarmos, nos respeitarmos, de nos unirmos enquanto classe, enquanto lutadores da política dos trabalhadores e trabalhadoras. Não podemos mais seguir afirmando que quem nos reprime nas manifestações é apenas o Estado, como se fosse algo em si mesmo, como se este não fosse apenas o mais poderoso instrumento da burguesia. Temos que aprender esta lição, pois Junho nos ensinou que outros instrumentos, para-estatais, também nos reprimiam, para que ao fim a voz que prevalecesse nos protestos fosse aquela que pedia mais mercado (“padrão FIFA” é padrão privado, certo?) e não nossas tradicionais bandeiras de luta: pelo público, pelo gratuito, pelo justo, de qualidade e para todos.
Já é hora de rever a posição quanto às jornadas de Junho. Não podemos seguir reféns dela, pois a hegemonia burguesa prevaleceu. Não conheço ninguém que tenha ido às manifestações e tenha alterado suas convicções políticas depois delas, seja quem era de esquerda e quem não era. Não conheço ninguém que achava que o problema do Brasil (e do mundo) eram os políticos corruptos passar a achar que o problema são os empresários exploradores – ou que todo político corrupto é um empresário explorador. Não conheço ninguém que já não era de esquerda ou próximo da esquerda se tornar socialista por causa daqueles protestos. Não vejo quem era contra greves passar a ser a favor. Não sei que quem era a favor da redução da maioridade penal ficar contra. Nem quem era homofóbico, machista ou racista deixar de ser. Alguém por favor me apresente uma pessoa que era a favor da pena de morte ou da propriedade privada dos meios de produção passar a ser contra depois de Junho.
Então o que mudou, além de nós mesmos em nossa oscilação entre a tentação da facilidade mágica e o oportunismo barato? Isso vale para todo/as nós. Não é o “gigante” da burguesia, somos nós que precisamos acordar.
Ainda bem que a política não acabou, pois se tivesse acabado alguém teria alguma dúvida em afirmar que o capital venceu? Pergunte ao Olavinho Setúbal, a Jorge Paulo Lemman e ao Sr. Luiz Trabuco para ver se eles se sentem derrotados, com seus ganhos recordes trimestrais. Se você é de esquerda, socialista ou revolucionário e nunca ouviu esses nomes, fica sugestão, quem sabe seja por aí que devemos que começar… Pois desconhecer a burguesia, suas táticas e múltiplas opções – simultaneamente democráticas, ditatoriais e até revolucionárias – é o pior erro de quem busca derrotá-la. A história exige mais de nós nessa hora.
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[1] Revista Veja, edição de 19 de Junho de 2013, nº 2326. Cf. http://veja.abril.com.br/acervodigital/home.aspx
[1] Este breve, porém impactante, texto, de caráter político-poético me chegou pela lista de emails do PCB, sem autoria, naqueles dias de Junho:
“Olhos no futuro
Dezenas de militantes de esquerda, filiados a partidos revolucionários, foram obrigados a marchar de costas na manifestação de quinta-feira, 20 de junho. Acuados por mascarados e encapuzados, alguns envoltos na bandeira nacional que, naquele momento, simbolizava o reacionarismo mais truculento, estes bravos militantes fizeram uma corajosa barreira de defesa da integridade física dos seus companheiros e, para além da imediaticidade do momento, empunhavam as bandeiras históricas dos movimentos dos trabalhadores, explorados e oprimidos de todo o mundo. Confrontados no campo militar, as bandeiras vermelhas permaneceram nas suas mãos. E estarão novamente nas ruas quando chamadas a luta.
Eles marcharam de costas, mas com os olhos no futuro.
Avante, camaradas!”
Sensacional! Uma perspectiva bem pertinente e realmente diferente de tudo que é divulgado com mais frequência. Parabéns pelo texto!