Euforia e hipnotismo, de um lado, manifestações contra, do outro. Enquanto uns fazem um parêntesis na existência para entregar-se ao espetáculo da Copa do Mundo, sempre acompanha de álcool e festa, outros manifestam seu descontentamento social pela política econômica, renovando a clássica crítica ao “pão e circo” do império romano. É uma marca do futebol: evidenciar os extremos, polarizar as facções e os sentimentos, sublinhar as opostos. Contraste que oferece duas vertentes de uma só moeda. Oposição entre “conscientes” e “alienados” dentro de uma mesma nação, ou oposição entre povos distintos.
Neste último caso, os limites são ainda mais nítidos, rígidos e sempre provocatoriamente coloridos. Rivalidades históricas, motivadas ou não, ressurgem das cinzas. A faísca o gol reacende a brasa oculta e a chama se reaviva. A hostilidade se levanta em toda sua força: do lado de cá, os torcedores do “nosso” time, que vestem a mesma camisa, desfraldam a uma só bandeira, gritam com o sucesso da “seleção canarinha” vestida de verde e amarelo, falam a mesma língua; do lado de lá, a massa indefinida dos “outros”, adversários convertidos em inimigos, competidores em guerra – fria ou quente. Dentro e fora do campo, futebol torna-se sinônimo de batalha!
Eis o futebol como verdadeira caricatura do esporte! O que poderia se tornar encontro e intercâmbio entre pessoas e povos, grupos e nações, culturas e valores – não passa de um pretexto para reeditar, em termos às vezes folclóricas e outras vezes esplosivos, o dualismo maniqueísta de todos os tempo, onde as fronteiras entre o bem e o mal encontram-se fortemente demarcadas. Os “nossos”, evidentemente, encarnam o bem, fazem um jogo limpo, formam uma verdadeira família, arrastam uma infinidade de fãs, reafirmam com novas tintas o patriotismo nacional… Os “outros”, ora os outros, naturalmente são truculentos, desunidos entre si, prontos à explosão, provocativos a agressivos.
O hipnotismo e a euforia, ébrios ambos, tornam cegos e surdos os torcedores, os representantes da imprensa, a opinião pública, e não raro um povo inteiro. Todos parecem olhar o gramado a partir da arquibancada, onde as massas anônimas, as palavras de ordem e o fascínio toma conta de todos. Desse ponto de vista, a arbitragem é sempre tendenciosa e os gritos induzem a um julgamento precipitado. Uma só coisa se espera: bola na rede, se possível gol de placa! A derrota é de antemão inadmissível, só a vitória honra a “nossa” seleção! Os próprios protagonistas do jogo, assediados e louvados como estrelas, podem a qualquer momento converterem-se em planetas sem luz. Basta uma falha, por menor que seja, e o pedestal do craque se transforma em escombros e ruínas. Pior ainda para o técnico.
Se o futebol é caricatura do esporte, o é também da sociedade e da política brasileira. Nesta, poucos entram em campo, fazem parte das classes dirigentes e participam das decisões. A grande maioria, no estádio ou pela “telinha”, limita-se a aplaudir ou a vaiar. Também neste caso não há meio termo. Os pólos parecem bem definidos: ou se ganha, se comemora, se agride o adversário, tudo regado a abundante cerveja (para comemorar!); ou se perde, se apela para a má arbitragem, se critica o técnico e a os craques, tudo novamente regado a cerveja (para afogar as mágoas!). Tanto o futebol quanto a política desconhecem as ambiguidades, dúvidas, perguntas e contradições do coração humano. “Coração de gente é terra selvagem”, adverte Guimarães Rosa. Futebol e política são tentatos a traçar uma linha reta e linear onde a realidade é bem mais complexa: cheia de curvas e supresas, avanços e recuos, um verdadeiro labirinto. Ou então oscilar entre o “vale tudo”, o “jeitinho brasileiro” e a força bruta.
Não, em campo minado, como é o caso do esporte e da administração pública (e do amor, por exemplo), jamais se corre e tampouco se pode caminhar em linha reta. Como diz a sabedoria popular, é preciso “dormir no assunto”, saber ouvir a opinião silenciosa do travesseiro, para só então, no dia seguinte, aventurar uma opinião mais ou menos amadurecida. Caso contrário, facilmente o sangue ferve, os ânimos se acirram, os pólos entram em conflito e o maniqueísmo dualista torna-se inevitável – e como sempre nefasto!
Por Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS – Roma, 28 de junho de 2014