Por Sylvia Debossan Moretzsohn.
“Pois eu tive fome, e vocês me deram de comer; tive sede, e vocês me deram de beber; fui estrangeiro, e vocês me acolheram; necessitei de roupas, e vocês me vestiram; estive enfermo, e vocês cuidaram de mim; estive preso, e vocês me visitaram”.
Mesmo quem não é católico, mesmo quem não tem religião conhece certas passagens do Evangelho, como esta de Mateus (25:35).
Mesmo quem não é católico, mesmo quem não tem religião sabe da importância histórica e política da Igreja. Quando esteve aqui para a Jornada Mundial da Juventude, no ano passado, o papa Francisco, em entrevista exclusiva à GloboNews, ressaltou o papel social da instituição: “A Igreja é mãe”. Como se acolhesse uma criança junto ao peito, enfatizava as palavras: “A mãe faz assim com o filho, cuida dele, o acaricia, o beija e o alimenta”.
Meses depois, num discurso no Vaticano, repetiu: “Aqueles que baterão à porta da minha casa, como irão encontrá-la? Se a encontrarem aberta, (…) experimentarão a paternidade de Deus e entenderão como a Igreja é uma boa mãe, que sempre acolhe e ama”.
No Rio, um grupo de pobres provou o contrário. Depois de enxotados da ocupação do conjunto de prédios da Oi e dos jardins da Prefeitura, onde acamparam sob chuva pedindo urgência para a obtenção de uma casa, eles se dirigiram à Catedral Metropolitana. A Igreja inicialmente tentou negociar, mas depois fechou as portas, a ponto de cancelar as celebrações da Sexta-Feira da Paixão.
Maltrapilhos com seus malditos frutos do ventre a tiracolo, diante da catedral fechada: não poderia haver cena mais simbólica para uma Semana Santa.
Contra o “movimento organizado”
A Arquidiocese do Rio repetiu o discurso oficial: lamentou que pessoas carentes de direitos básicos como o de moradia sejam manipuladas por outros interesses. Alegou falta de segurança para realizar a liturgia.
No dia 31 de março, um grupo ocupou o terreno e os prédios da empresa de telefonia Oi, num subúrbio do Rio, abandonados há anos. Em poucos dias, cerca de 5 mil pessoas, em barracos improvisados, se instalaram no que passou a ser chamado de “Favela da Telerj” – ou, numa definição mais precisa, “Favela da Oi”.
No dia 11 de abril, ainda de madrugada, a polícia cercou o local para cumprir um mandado de reintegração de posse. As cenas de terror se espalharam: violência contra os que protestavam, reação de traficantes dos morros vizinhos, ônibus e carros de polícia queimados, depredação do comércio à volta. Parte do grupo saiu dali para acampar nos jardins em frente à sede da Prefeitura do Rio e se abrigou também na passarela coberta que dá acesso ao metrô da Praça Onze. Mais uma vez expulsas, as pessoas foram parar diante da catedral, às vésperas do feriado de sexta-feira (18/4).
Que se trata de um movimento organizado, não deveria haver muita dúvida, porque 5 mil pessoas não se mobilizam assim de repente e coletivamente. A própria data escolhida para a ocupação é significativa, considerando-se o cinquentenário do golpe militar. Porém, movimentos organizados são perfeitamente legítimos. E, mesmo quando não são, tampouco deveriam surpreender: pobres sempre foram massa de manobra. Por isso são tão úteis aos mais diversos e abjetos interesses. Entretanto, isso não desqualifica, pelo contrário, aprofunda a intensidade do drama social exposto na flagrante ausência de direitos elementares como o de moradia.
A ênfase na manipulação
Em vez encarar esse drama, em vez de horrorizar-se com as cenas de selvageria que marcaram a reintegração de posse ou de indagar por que o governo não investiu na negociação com os ocupantes, O Globo preferiu sentenciar, no editorial de sábado (12/4): “É preciso punir quem manipula e lucra com a invasão”. No mesmo espaço, destacou a “leniência do poder público”, que “estimula ocupações”.
Menos do que leniente, o poder público poderia ser acusado de irresponsável, por descumprir compromissos anunciados nos palanques permanentemente eleitorais, com a eterna massa de manobra arregimentada para os aplausos de praxe. No caso da “Favela da Oi”, isto seria particularmente pertinente: em julho de 2012, numa cerimônia de entrega de unidades do programa Minha Casa, Minha Vida e diante da presidente da República, o prefeito assinou acordo para, no prazo de um mês, comprar o imóvel abandonado e iniciar a construção do “Bairro Carioca II”, que beneficiaria 2.240 famílias (ver aqui).
Nas seis páginas que dedicou à cobertura da desocupação, O Globo reservou apenas um pequeno box de “memória” no qual, brevemente, mencionava o “impasse”: “o negócio desandou” porque o prefeito “alegou que o preço [a ser pago pelo imóvel] era muito alto”.
Diferentes sensibilidades
Foi muito diferente a escolha editorial de O Dia, que, na capa de sábado (12/4), responsabilizava o prefeito em manchete: “Paes desistiu de pagar preço combinado por prédios da Oi”. Dias depois, na quinta-feira (17), o jornal alertava para a armadilha, então denunciada apenas nas redes sociais, que poderia levar “do cadastro social para a ficha criminal”: os desalojados relacionados pela Prefeitura correriam o risco de ser indiciados como invasores, dependendo da condução do inquérito policial a ser instaurado para a apuração do caso.
São distintas sensibilidades editoriais. Um abismo que se reflete também nos números de circulação: pelos dados de 2012, O Globo é o terceiro maior jornal do país, com média pouco inferior a 278 mil exemplares diários; O Dia é o 23º, com menos de 45 mil.
Ao noticiar o cancelamento das celebrações da Semana Santa, O Globo reiterou em editorial (19/4) a necessidade de investigar o que estaria por trás de movimentos como aquele. Talvez fizesse melhor se indagasse como um punhado de marginalizados foi capaz de inviabilizar uma encenação feita sempre em nome deles mas na qual, a rigor, nunca passaram de figurantes.
[Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013).Escreve para o Observatório de Imprensa]
Fonte: Adital