Por Juliana Cislaghi
Há muitos anos o grande capital tem buscado mecanismos de atacar a saúde pública no Brasil para abrir espaços para o mercado. O SUS, construído na luta dos trabalhadores contra a ditadura e por uma Constituição que garantisse direitos sociais é reconhecido como uma das mais avançadas legislações para sistemas de saúde no mundo e responsável exclusivo pelo acesso à saúde de 70% da população brasileira. No processo de consolidação do SUS enormes são os problemas: a garantia de acesso, a formação de uma força de trabalho bem preparada e bem remunerada, a qualidade dos serviços.
A maior dificuldade não está, porém, na falta de propostas ou de um arcabouço legal e técnico que garanta a realização desses desafios. A lei 8080/90 prevê: a universalidade do acesso, a integralidade entre ações preventivas e curativas, um plano de carreira única para os profissionais – que tornaria desnecessárias medidas de precarização do trabalho como o Mais Médicos –, descentralização dos serviços para os municípios mas com possibilidade de construção de consórcios intermunicipais, e, um inovador mecanismo de participação que permite por meio de Conselhos deliberativos composto por 50% de usuários, 25% de trabalhadores do SUS e 25% de gestores a fiscalização desse sistema.
Historicamente todos esses princípios foram sistematicamente combatidos pelo grande capital, interessado em ter nos serviços de saúde um espaço de obtenção de lucros. Como vender saúde privada para a população se existir um sistema público de qualidade?
O sucateamento do SUS, forjado por seu desfinanciamento histórico, esteve, assim, a serviço, por um lado, de uma ideologia que abriu caminho aos mercadores da saúde. As dificuldades de acesso a serviços especializados, a falta de leitos e de profissionais criou o pânico necessário para a opção por planos de saúde daqueles que podiam pagar e mesmo a reivindicação de planos coletivos de saúde por parte da classe trabalhadora com vínculos formais de trabalho.
Por outro lado, o desfinanciamento do SUS “economizou” fundo público que foi repassado como esteio do capital, seja por meio do pagamento de juros da dívida, seja por financiamento direto e indireto aos empresários da saúde.
Para garantir recursos para o pagamento da dívida pública o governo retirou da Seguridade Social (Saúde, Previdência e Assistência Social) e da política de educação seu financiamento garantido pela Constituição, por meio da DRU – Desvinculação das Receitas da União, criada em 1994 pelo governo FHC como Fundo Social de Emergência e mantida pelos governos Lula e Rousseff. Apenas entre 2000 e 2007 estima-se que esse mecanismo tenha retirado do financiamento da Seguridade Social cerca de 278,3 bilhões de reais (Salvador, 2010).
Apesar disso, os governos seguem fazendo propaganda dos aumentos nominais nos gastos com saúde a cada ano. Esses aumentos, no entanto, não acompanham nem o aumento do PIB nem o aumento de arrecadação do governo. Segundo Carvalho (2013) a aplicação da receita corrente bruta da União na função saúde que era de 11,72% em 1995 passou para 7,3% em 2011. A participação de recursos federais na saúde também se reduziu de 56% do total em 2001 para 47% em 2011, assim como também se reduziu o gasto federal anual per capita. Apesar de termos, em tese, um sistema de acesso universal para a população nosso gasto público per capita por ano é de baixíssimos U$ 335 enquanto nossos vizinhos argentinos gastam U$ 485 e o Reino Unido U$ 3,4 mil (Valor Econômico, 2012). Só esse ano o governo Rousseff já anunciou dois cortes de orçamento na saúde que somam cerca de 12,8 bilhões o equivalente a 10% do orçamento previsto para 2015, recolocando a dotação nos patamares de 2014. Fica claro, assim, a falácia de que o SUS tem um crescimento exponencial de recursos impossível de ser acompanhado pela arrecadação de impostos e contribuições pelo governo.
Ao mesmo tempo que o governo reduz o orçamento do SUS transfere direta e indiretamente recursos para o setor privado por vários meios. Em primeiro lugar por meio de gasto tributário, isto é, isenções fiscais. Os dois principais tributos federais que sustentam a saúde e o conjunto da Seguridade Social são a Cofins e a CSLL. Para efeitos de projeção, em 2012 as isenções dadas às empresas de Cofins e CSLL, que incluem todas as atividades dos grandes eventos e próprio setor privado de saúde por meio da indústria farmacêutica e de equipamentos e de hospitais considerados sem fins lucrativos, alcançaram o equivalente a 41% do que era previsto para a saúde no ano (Cislaghi, 2015).
Em segundo lugar, ao repassar recursos orçamentários e comprar serviços de entidades “sem fins lucrativos”. A legislação que regula essa forma jurídica vem sendo sistematicamente flexibilizada, sobretudo nos governos de Lula e Rousseff a ponto dos grandes hospitais da burguesia brasileira como o Albert Einstein e o Sírio Libanês terem esse estatuto sem nenhuma contrapartida em serviços gratuitos para a população. Essas entidades podem, ainda, serem qualificadas como organizações sociais e assumirem a gestão dos serviços públicos recebendo recursos do Estado para isso, outra forma de transferência do fundo público para o setor privado.
Todo esse apoio ao crescimento do capital privado na saúde é recompensado nas campanhas eleitorais. Os planos de saúde doaram nas eleições de 2014 54,9 milhões de reais para 131 candidatos no executivo e no legislativo federal formando, assim, sua bancada de lobistas que inclui o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, e a presidente da República que só da Amil recebeu generosos 7 milhões de reais para sua campanha.
Em artigo recente (Cislaghi, 2015b) fiz o levantamento de todas as medidas, desde o fim das últimas eleições, que a bancada da saúde privada garantiu para seus patrocinadores. Entre elas está a liberação do capital estrangeiro nos serviços de saúde e novos e rebaixados cálculos do orçamento anual mínimo para a saúde determinados pela emenda constitucional 86 de autoria de Eduardo Cunha, que também foi responsável por enterrar a CPI dos planos de saúde, proposta pelo PSOL.
Mais grave, e ainda em curso, é a proposta de emenda constitucional, também de autoria de Eduardo Cunha, que prevê a obrigatoriedade de pagamento de plano de saúde pelos empregadores, um retrocesso que garantirá a ampliação do mercado para os planos e colocará por terra a lógica do sistema único e universal. Saúde privada para os trabalhadores formais e um SUS pobre para os pobres.
A isso soma-se agora as propostas de Renan Calheiros na chamada Agenda Brasil. Para a saúde duas ideias:
Aperfeiçoar o marco jurídico e o modelo de financiamento da saúde. Avaliar a proibição de liminares judiciais que determinam o tratamento com procedimentos experimentais onerosos ou não homologados pelo SUS.
Avaliar possibilidade de cobrança diferenciada de procedimentos do SUS por faixa de renda. Considerar as faixas de renda do IRPF.
Traduzindo, em primeiro lugar restringir a judicialização do acesso a tratamentos complexos, o que tem sido a única saída da população em muitos casos, e que permitiria também aos planos privados negar tratamentos onerosos. Em segundo lugar, o fim definitivo do sistema público universal por meio da velha proposta de copagamento por faixas de renda, o sonho do Banco Mundial. Além de pagar seus impostos, o usuário ainda pagaria pelos serviços, com algum subsídio do governo para os mais pobres. Ou seja, o fim do SUS, em uma frase.
O programa Farmácia Popular, criado por Lula, é assim. O usuário paga 10% do valor do medicamento, o governo paga 90%. A partir de 2006 as farmácias privadas passaram a fazer parte do programa. Conclusão: dinheiro certo do fundo público, fim da gratuidade na assistência farmacêutica como previsto pelo SUS para seus usuários e lucros recordes para as farmácias. Em 2014 as farmácias ligadas à Associação Brasileira de Redes de Farmácia e Drogarias (Abrafarma) registraram um aumento de 13,69% das suas vendas. Dessa alta, 10,94%, o equivalente a 272,2 milhões de reais, referem-se ao Programa Farmácia Popular. A expectativa das farmácias é de manterem um crescimento acima de 10% por ano já que as projeções apontam que o mercado de medicamentos no Brasil vai dobrar de tamanho em cinco anos (Valor Econômico, 2014).
Rousseff disse que a Agenda Brasil de Renan Calheiros é uma agenda positiva e muito bem-vinda, e que a maioria das propostas coincide com as de seu governo. Nenhuma surpresa. Não há nenhuma polarização entre o PT, o PMDB e o PSDB para as políticas de saúde. O PT no governo passou para o lado das organizações sociais, dos planos privados, da indústria farmacêutica, do capital estrangeiro. A Reforma Sanitária da década de 1980 ficou apenas para os dias de festa. O que vemos é uma disputa de quem consegue privatizar mais a saúde para agradar seus patrocinadores.
Para os trabalhadores a garantia de acesso à saúde pública, gratuita, universal, de qualidade é a garantia de sua reprodução física, da sua sobrevivência. Lutar pelo SUS é, portanto, questão de vida ou morte. Nem a agenda de Calheiros, nem a de Cunha, nem a de Rousseff ou do PSDB, essa é a agenda do capital, não a nossa.
Referências Bibliográficas:
CARVALHO, Gilson. Saúde Pública. Estudos Avançados, n. 27, 2013.
CISLAGHI, Juliana Fiuza. Elementos para a crítica da economia política da saúde no Brasil: parcerias público privadas e valorização do capital. Tese de doutorado. Uerj, 2015.
____. Retrocessos no legislativo e impactos para a saúde no Brasil. In: BRAVO, Maria Inês et al (orgs). Cadernos de Saúde: a mercantilização da saúde em debate. Rio de Janeiro: Rede Sirius: 2015b.
SALVADOR, Evilásio. Fundo Público e Seguridade Social no Brasil. São Paulo: Cortez: 2010.
VALOR ECONÔMICO. Valor setorial saúde: apoio à produção nacional. Outubro de 2012.
_____. Atenção básica: desafio é fazer mais com melhor gestão dos recursos. Agosto de 2014.
Fonte: http://blogjunho.com.br/