Por: Sonia Fleury*
As perplexidades que assolaram analistas e observadores decorreram tanto da grandiosidade inesperada das manifestações e seu efeito multiplicador no espaço e no tempo, como também pela diversidade das críticas apresentadas em cartazes artesanais, mostrando que não há uma organização centralista por trás da enorme rede que se mobilizou e colocou o tema da política no centro da vida de todos.
Para muitos a dificuldade maior é entender como o aumento de vinte centavos pode detonar um processo tão complexo e fazer todo o Brasil, mesmo em tempo de jogos da taça das confederações, debruçar-se sobre as discussões políticas com tanto ardor e paixão, construindo coletivamente a agenda política da democracia no país.
O fio invisível que une todas as reivindicações e demandas é a necessidade de aprofundar a democracia, de tal forma que a cidadania se sinta respeitada pelas instituições governamentais, responsáveis por assegurar sua segurança e seus direitos a uma vida digna, na qual a polícia proteja os cidadãos, os parlamentares representem a vontade dos que os elegeram, o Executivo cumpra o programa para o qual foi eleito, dando prioridade à melhoria dos serviços públicos que atendem às necessidades dos cidadãos ao invés de entregá-los aos interesses empresariais.
O fato dos governantes estarem mais preocupados com o espetáculo dos megaeventos desvendou o predomínio do processo decisório autoritário onde as prioridades públicas são definidas na promiscuidade com os interesses privados, eliminando a participação popular prevista na Constituição Federal de 1988. Esse é o pano de fundo do surdo clamor dos jovens e, agora, de todos os citadinos, mostrando que foi preciso tomar a cidade para que os interesses de seus habitantes fossem levados em conta, nessa primeira vitória dos R$0,20.
O autoritarismo e o desrespeito aos direitos humanos e sociais, vivenciado cotidianamente por aqueles que habitam as favelas e periferias da cidade, enfim chegou ao centro da agenda pública, mostrando que na cidade campeiam remoções, o saneamento não existe, a creche não tem vagas e a escola não ensina; o hospital não tem remédio, profissionais e não cura; o transporte não vem ou está lotado e caro; a segurança da concessionária chicoteia e empurra os passageiros e a polícia exibe fuzis e joga spays de pimenta em nome da paz. Enfim, a cidade que foi dita partida, agora está integrada, assim como todo o país, pela necessidade de aumentar a qualidade da nossa democracia.
Doutora em Ciência Política, Professora da EBAPE/FGV.