Os tempos de desastres socioambientais como o da Região Serrano do Rio de Janeiro, ocorrido em janeiro de 2011, são boas oportunidades para examinar nossa relação com a Terra. As pessoas ouvidas em reportagens sempre se referiram a Deus quando desejavam expressar porque estavam vivas: só por Deus mesmo. Não se referiam à natureza como a responsável pelo que atingia sua vida; pareciam entender que outras coisas tinham a ver com as avalanches, deslizamentos e alagamentos que varriam plantações, pontes, ruas e estradas, carros, casas e pessoas. Alguém se expressou assim: não é a chuva que deve ir para a cadeia.
Pois o assunto da presente reflexão é exatamente essa nova maneira de entender quem deve responder por esses desastres e deve ir para a cadeia. Ela exige, como se verá, abertura de espírito, superação de preconceitos e muita vontade de mudar. Afinal, quem se dispõe a superar, crítica e praticamente, a civilização em que foi concebido e educado, e que estabelece os valores em que se baseia o padrão de produção, de consumo e de vida em sociedade nos últimos séculos?[1]
Os direitos da Terra
Os “direitos ambientais” entraram na lista de direitos reconhecidos muito recentemente; são de última geração. Mesmo assim, nem a visão antropocêntrica de sua formulação tem sido bem recebida. Vejam: quem efetivamente reconhece que cada uma e todas as pessoas têm direito a um ambiente saudável? Basta verificar o que se passa com a contaminação do solo, das águas e da atmosfera nas cidades.
Como se percebe, a reflexão assume duas dimensões dos direitos ambientais: a que se liga ao direito humano a um ambiente saudável e a que reconhece os direitos da própria Terra ao ambiente criado por ela. Até agora, referimos como houve poucos avanços no reconhecimento real da dimensão antropológica dos direitos humanos; mas é preciso reconhecer que já se avançou e que, pelo menos, cresce o número de constituições estatais que reconhecem essa dimensão dos direitos ambientais. Já a visão de que a Terra tem direito ao ambiente criado por ela avança muito lentamente, e é duramente contestada por governos, empresas e grupos sociais empenhados em manter o tipo de progresso desenvolvido nos últimos séculos.
Mas há avanços
Engana-se quem pensa que o modo capitalista de viver é universal; engana-se igualmente quem acha que é natural o mercado assentado sobre a livre concorrência entre os que têm capital e poder para estabelecer preços e controlar governos. Na verdade, esse modo de vida e esse tipo de mercado existem, crescem, exploram e dominam nos poucos séculos em que a ideologia capitalista luta para impor-se a toda a humanidade.
Houve e há povos que resistiram a essa proposta, imposta com todo tipo de manipulação e violência. Não aceitaram, para começar, a pedra fundamental dela: a propriedade privada. Isto é, a ideia e a prática de que, com dinheiro, pode-se adquirir direito sobre extensões de terra e sobre tudo que é feito como iniciativa individual; um direito que ninguém pode contestar, e que deve, por isso, ser defendido pelo Estado; um direito de fazer o que se quer em sua propriedade e com suas propriedades, mesmo se entre elas estiver a capacidade de trabalho de pessoas, comprada como mão-de-obra em troca de salário.
E agora, no tempo em que se tornam dramáticos os efeitos dessa ditadura da propriedade, especialmente através do aquecimento médio da temperatura do planeta Terra, e das mudanças climáticas provocadas por ele, o confronto destes povos com o modo capitalista de viver se aprofunda. Basta ver como são tratados povos indígenas e países como a Bolívia e Equador, e parcelas de outros países, como é o caso dos povos da floresta, as comunidades quilombolas e demais comunidades tradicionais do Brasil. São considerados um novo tipo de terroristas que colocam em questão os sagrados direitos dos poucos e poderosos que vão se apropriando da Terra.
Estes povos relacionam-se de outro modo com a Terra: reconhecem que ela existe antes deles, que vieram dela, que ela é origem e fonte de sua vida; que, por isso, ela tem direitos anteriores aos dos humanos.
Vão mais longe: ela não é apenas um ser vivo e fonte de vida, mas sim Pachamama, um ser com poderes divinos que merece todo respeito, cuidado, culto. É preciso reconhecer-se parte dela e saber que só se pode viver nela amando-a e sendo amados por ela. Tudo que se faz a ela repercute na vida dos seres que nela vivem.
Esta visão já não está presente apenas, e de forma quase oculta, nas comunidades resistentes ao domínio colonial e capitalista. Ela já está reconhecida nas Constituições dos Estados Plurinacionais da Bolívia e Equador [2]. Aí já não reina absoluta a propriedade privada capitalista; ao contrário, avança o reconhecimento jurídico, cultural, econômico e espiritual do território que cabe a cada povo; território destinado por Deus e Pachamama a cada povo e, por isso, lugar de vida em todas as dimensões.
Para que um povo possa viver no seu território por milênios e, mais ainda, garantir qualidade de vida para futuras gerações, ele precisa cuidar, cultivar, cultuar seu espaço vital. Não pode descuidar de seu equilíbrio, que depende da convivência entre tudo o que a constitui: águas, florestas, animais, peixes, insetos, ar, solo, chuva, sol, lua, estrelas. Se algo for mexido, deve haver um diálogo que religue as relações, que garanta a paz entre as forças, os espíritos da Terra, e com as comunidades humanas.
Um conflito necessário
Não é estranho, então, que a Bolívia lidere, através de seu governo indígena, a luta pelo reconhecimento dos direitos da Mãe Terra, e que conte com apoio de muitos outros povos e de movimentos, pastorais e entidades sociais. Menos estranha ainda é a existência de inimigos desta proposta civilizacional para a humanidade, pois eles se sabem assentados sobre bases que estão ruindo, sobre pretensos valores que levam à agressão constante ao planeta, com todos os seus seres vivos, inclusive os humanos; e sabem, por isso, que a proposta de uma civilização que integre efetivamente a humanidade com a Terra pode ir sendo assumida por muita gente, apressando o fim da civilização da modernidade capitalista.
De fato, a Terra está dando sinais de que está estressada por causa da forma espoliadora que as empresas industriais e promotoras do consumismo se relacionam com ela. Ela não consegue repor o que é retirado dela como matéria prima. Em particular, não consegue manter o equilíbrio entre os gases e umidade que compõem a atmosfera, cada dia mais agredida pela emissão de gases que retém calor e provocam aumento da temperatura. A Terra está estressada, desequilibrada e febril, e isso a leva a ter dificuldade de continuar gerando vida. Como expressa em linguagem religiosa o apóstolo Paulo, em sua Carta aos Romanos, na parte em que está o lema da Campanha da Fraternidade de 2011: a Terra está gritando em dores de parto, esperando ansiosamente que os filhos e filhas de Deus se manifestem, para participar de sua libertação; e está assim não por sua vontade, e sim pela vontade de quem a submeteu à corrupção…[3]
É por isso que, se bem compreendida, a situação de aquecimento e mudanças climáticas é uma nova e radical crítica à civilização produtivista/consumista da modernidade capitalista. É nova por vir da própria Terra e da relação dela com os seres humanos, reforçando a que nasce das consequências sociais do absoluto da economia de livre mercado na política dos estados modernos capitalistas. É radical porque o aviso da Terra é este: ou se supera o capitalismo produtivista/consumista, ou os dias de vida humana no planeta podem estar contados. De fato, não basta criar novas tecnologias menos poluentes – necessárias, com certeza; é urgente diminuir a exploração dos bens da natureza, reduzidos a recursos/matérias primas, e mudar totalmente a relação com as energias e vitalidade da Terra. E isso, só uma nova civilização é capaz de realizar.
Concluindo
A Terra veio se constituindo numa longa história, e foi desse processo que o ambiente favorável à vida foi sendo criado. O ser humano existe há pouco tempo no planeta. Mesmo assim, os que criaram os Estados modernos, deram forma constitucional, desenvolveram e foram impondo a economia capitalista, e a civilização que dela nasceu, são detentores de uma imensa dívida ecológica. Trata-se de uma dívida para com a própria Terra, por conta da exploração de que foi vítima, e para com a parte da humanidade que, além de ser explorada, teve, tem e terá imensas dificuldades de viver no ambiente contaminado, empobrecido, quase morto.
Todos os custos necessários para a revitalização da Terra, em todos os seus biomas e ecossistemas, é dívida a ser paga por quem criminosamente a levou ao estresse, desequilíbrio e febre. Todos os custos para desenvolver novas tecnologias; para passar de uma economia agropecuária química e agressiva para uma economia baseada no campesinato e na agropecuária agroecológica; para recompor o que foi colocado em risco pela indústria e o comércio privados; todas são dívidas a serem assumidas por quem acumulou riqueza, renda e poder explorando a Terra, os trabalhadores e todos os demais seres vivos.
Nesta visão, as dívidas externas que penalizam os pobres dos países explorados passam a ser crédito, e os países até agora com status de credores passam a devedores e responsáveis por muitos tipos de morte. Existindo um Tribunal dos Crimes Ecológicos, caberá a ele definir as penas que ultrapassam os débitos financeiros, criando condições para uma Justiça condizente e construtora da nova civilização do bem-viver, com novas, simples e equilibradas relações entre os seres humanos e com os territórios de cada povo que são parte da Terra.
[1] É com essas duas dimensões que os direitos ambientais são assumidos no texto O Brasil que Queremos, expressando avanços no Projeto de Brasil da Assembleia Popular, Mutirão por um Novo Brasil.
[2] Cf. Alberto Acosta y Esperanza Martínez (org.). Derecho de la Naturaleza. El futuro es ahora. Quito, Ecuador: Ed. Abya-Yala, 2009.
[3] Rm 8,18-22.
Goiânia, 23 de janeiro de 2011.
Ivo Poletto