Por Chico de Filippo
Desde o veto da Presidente Dilma Rousseff sobre o artigo incluído pelo Deputado Edimilson Rodrigues (PSOL/PA) no PPA 2016-2019 que versava sobre a realização da auditoria da Dívida Pública Brasileira, conforme previsto na Constituição Federal, iniciou-se um debate na esquerda a respeito da validade desta auditoria como capaz de eliminar os problemas fiscais brasileiros e de reverter a lógica perversa da atual política econômica. A principal controversa tem-se feito a respeito do famoso quadro da pizza, que explicita o montante de juros e amortizações pago pelo Governo, quadro que é apresentado cotidianamente pela militância.
Cabe ressaltar que estes valores estão de acordo com todas as publicações governamentais sobre o orçamento, como pode ser visto no Siga Brasil do Senado Federal[1] quanto nos dados disponibilizados pelo Ministério do Planejamento. Ademais, no âmbito privado, a FGV evidencia no seu mosaico[2] números semelhantes.
Todavia, de certa forma, estão corretos/as os/as que criticam o gráfico pois, a parte do dinheiro destinados ao refinanciamento, por tratar-se da própria emissão de títulos, acaba confundindo pois sinaliza que todo este recurso poderia, de alguma forma, ser destinado a outros fins. Porém, dada a dinâmica e a interação entre a política de amortizações e os juros, mesmo ao longo de um ano fiscal corrente, também é errado dizer que todo o recurso previsto para o refinanciamento é uma conta a parte e não interfere na dinâmica orçamentária do todo. Quem faz esta crítica, está restrito(a) aos manuais básicos de economia e não entende a centralidade da dívida na gestão orçamentária. O artigo publicado por José Fevereiro[3], por exemplo, está cheio destes equívocos. Além de reproduzir o artigo, José Fevereiro continua defendendo a tese equivocada em palestras e seminários em nome do PSOL, o que é grave.
Fazer auditoria também não quer dizer fazer uma “moratória simples”, ou o cancelamento da dívida por decreto. Todos(as) sabemos e acompanhamos o quanto o mercado financeiro já conseguiu reverter governantes eleitos justamente para enfrenta-los, como no caso mais recente do Syriza, na Grécia. Qualquer medida a ser tomada contra os fundamentos da política econômica financista, precisa, de imediato, já vir associado a um plano mais estruturado, que deve levar a questionar toda a política econômica e pensar nas medidas alternativas. Portanto, a publicações de decisões que afetem a gestão da dívida (mesmo que não seja o cancelamento de parte dos títulos) não é uma medida única e, com certeza será tomada com tantas outras que precisam ser formuladas com muitos detalhes.
Porém, não é porque são títulos que estão no mercado que não podem ser renegociados para um valor de face mais baixo. Mesmo o Governo de ultra-direita recém eleito na Argentina se dispôs a retomar o processo de renegociação dos títulos, com os fundos que não aceitaram a repactuação da Dívida. Não estamos falando de algo sobrenatural. Mas sabemos que não é uma medida que será tomada de forma isolada.
As finanças organizam o capitalismo mundial a partir da década de 1980 de forma hierárquica, tendo por centro o dólar e Wall Street, conferindo aos EUA privilégio ainda maior que aquele atingido na ordem do pós-guerra (Bretton Woods).  No Brasil, o domínio do capital financeiro passa pela manutenção do tripé de metas de inflação, liberalização cambial e superávit primário. Estes três, tratados como verdades absolutas que não podem ser questionadas nem em períodos eleitorais, são as bases econômica do constante processo do acúmulo de lucro do mercado financeiro, fazendo-o como o setor que mais cresce na economia brasileira desde o início do Governo Lula.
Se o tripé é a base da política econômica financista, cabe à gestão da dívida pública garantir a taxa de retorno do mercado financeiro. Para isto, a dívida tem, dentre outras, função de limitar o uso do orçamento público para fins de gestão das políticas públicas e ser o principal parâmetro da montagem do orçamento brasileiro. Em outras palavras, o orçamento é feito primeiramente para pagar juros e estruturar a rolagem da dívida. Tal política, como é vista hoje tem início junto ao plano Real. Todavia, é a partir do segundo governo FHC, com o estabelecimento do regime de metas de inflação que surgem alguns dos elementos balizadores desta política:
A Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF (Lei Complementar 101/2000) é a primeira normativa que consolida a primazia do pagamento dos juros da dívida sobre as demais despesas da União (Parágrafo 1 do Artigo 5º). É em torno desta prioridade que toda a peça orçamentária é montada e, a partir, também é estipulado, a cada bimestre (Artigo 9º), o volume do orçamento contingenciado, ou seja, o montante inicialmente previsto para as outras áreas que não poderão ser utilizados. Na prática, a Lei de Responsabilidade Fiscal faz com que os Governos segurem os gastos em todo o primeiro semestre, descontinuando projetos, remontando equipes e parâmetros, para no segundo semestre, sabendo do que é possível no ano, “correr” para executar o mais rápido possível.
Outra normativa fundamental é a Desvinculação das Receitas da União (DRU). Este instrumento permite que até 20% das receitas vinculadas a gastos sociais e investimentos poderiam ser destinadas ao abatimento da dívida. Assim, garante recursos que efetivamente possam ser destinados ao pagamento dos juros, por meio da geração dos Superávits Primários, que, conforme a LRF estabelece o montante de recursos que devem ser destinados ao pagamento da dívida. Até o ano de 2008 foram 10 anos seguidos com mais de 10% do orçamento destinados para o pagamento de juros. Mesmo assim, devido à gestão da política econômica, a dívida brasileira continuou a crescer. Fica evidente que o problema do crescimento da dívida não é com o “excesso de gasto” do Estado, mas com a política econômica voltada a gestão da dívida.
auditoria
Todavia, não satisfeito em consumir fatias importantes do orçamento e travar toda a gestão fiscal nas outras áreas, novas políticas vão sendo criadas sempre em favor de garantir que a gestão orçamentária priorize a gestão e o gasto com a Dívida Pública, como a Lei que permite o uso dos restos a pagar e do lucro com operações das reservas cambiais no abatimento da dívida (Lei 11.943 de 2009 e Lei 11.803 de 2008) ou mesmo a Lei 9.496/97 que securitiza a dívida dos Estados e Municípios mas estabelece uma taxa de juros que é sempre maior que a taxa de crescimento das receitas estaduais, fazendo com que cheguemos em 2016 com todos os estados brasileiros praticamente falidos e levados à privatização e retirada de direitos.
A importância da Auditoria:
O apanhando legal que apresentamos acima é uma pequena mostra de como a gestão orçamentária está destinada para garantir, primeiramente, o pagamento da dívida. Todavia, esta dívida é crescente em virtude da política econômica centrada no tripé das metas de inflação, liberalização cambial e superávit primário. Lógico que o processo é ainda mais complexo que o resumido. Porém o que é importante evidenciar deste artigo:

  1. A Gestão da Dívida Pública consome a gestão orçamentária do Governo Federal e dos Governos Subnacionais. De fato, esta dinâmica não tem como ser expressa num simples gráfico orçamentário, não porque os gastos com juros e refinanciamento possam estar superestimados, mas porque a dinâmica é constante e causa pressões diárias pelo corte das políticas sociais, por privatização de serviços e retirada de direitos.

 

  1. Ao longo dos anos, mais e mais inovações legais vão surgindo de forma a amarrar cada vez mais o orçamento estatal com a dinâmica da dívida, inviabilizando as demais políticas;

 

  1. Mexer neste processo é afetar toda a política econômica liberal. Portanto é algo não aceitável pelos governos que “seguem o mercado”. Promover qualquer mudança na lógica orçamentária implica, portanto, em ter que alterar toda a política econômica. Todavia, muitas destas mudanças já estão “impedidas” por lei, em especial a LRF.

 

  1. Assim, para dar sustentação à irresponsabilidade da política econômica levada à cabo pelos Governo Brasileiro desde meados dos anos 90 (quando o atual modelo foi implantado), bem como para provar irregularidades contratuais da gestão da dívida no período anterior, a bandeira da Auditoria da Dívida, prevista na Constituição Brasileira é uma bandeira didática bastante eficaz.

Com base numa auditoria, que deve realmente ser mais ampla e questionar o sentido de toda a política econômica e seus resultados concretos, um governo progressista e destinado a enfrentar o poder político, econômico e legal do capital financeiro, poderá armar-se de propostas concretas e legitimadas pela Constituição.
[1] http://www8d.senado.gov.br/dwweb/abreDoc.html?docId=684730
[2] http://dapp.fgv.br/mosaico/mosaic_f/2015
[3] http://cartamaior.com.br/?%2FEditoria%2FEconomia%2FDivida-Publica-mitos-e-realidade%2F7%2F35396
Publicado no site Insurgência.org

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