O debate sobre flexibilização ou revogação do estatuto do desarmamento – que limita o acesso e porte de armas de fogo – não é nenhuma novidade no Brasil. Tendo sido uma promessa de campanha do então candidato a presidente da República Jair Bolsonaro, a pauta ganha agora concretude com a posse do novo governo.
No Congresso Nacional dois são os principais projetos que tratam da matéria. No Senado, o Projeto de Decreto Legislativo nº 175, de 2017, de autoria de um conjunto de senadores, convoca um plebiscito para questionar a população sobre o porte de armas em algumas ocasiões. Na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 3722/2012, de autoria do deputado Rogério Peninha Mendonça revoga totalmente a Lei nº 10.826/2003 (Estatuto do Desarmamento), altera o Decreto-lei nº 2.848 (Código Penal) e estabelece novas regras para aquisição, posse, porte e circulação de armas de fogo e munições possui vários a ele apensados.
Contudo, ao que tudo indica, o governo federal não pretende aguardar o debate e solução via Congresso Nacional. Fará a alteração via decreto, segundo o divulgado.
No mérito, a demanda social pelo acesso às armas relaciona-se aos altos índices de violência, cujo maior exemplo é o registro de 63.880 mortes violentas intencionais, em 2017, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública.[1]
Embora os defensores do armamento tentem fazer a disputa de narrativas usando como exemplo países onde a legislação sobre armas é flexível, e os índices de mortes violentas menores que os nossos, as pesquisas reconhecidas pela comunidade acadêmica apontam para malefícios gerados pelo aumento de circulação de armas. Nesse sentido, trabalhos publicados sob a coordenação do pesquisador do IPEA, Daniel Cerqueira, revelam que o aumento de 1% de armas de fogo eleva em até 2% a taxa de homicídio e refutam, com criteriosa investigação de dados, os argumentos em sentido contrário.[2]
Lamentável, portanto, que o novo governo trate de um tema dessa relevância por meio de decreto, evitando que o Poder Legislativo e a sociedade civil organizada participem do processo decisório a respeito de um tema tão importante. Esclareça-se que não estamos aqui pretendendo tratar da limitação óbvia do princípio da hierarquia das normas, em que decreto não altera lei ordinária. Embora a possibilidade de exorbitar de seus limites esteja posta, o que se pretende é evocar que um debate dessa natureza não merece o tratamento por meio de uma “canetada”.
Armar cidadãos sem qualquer preparo para o uso de armas, a partir de critérios altamente subjetivos, para além de toda sorte de consequência de aumento da letalidade, é pretender colocar o ‘controle da criminalidade’ nas mãos da população civil. Essa população tem direito a um debate que fuja do maniqueísmo naturalizado em tempos de disputa eleitoral, de tal modo que possa ter acesso aos dados concretos que lhe possibilite acessar os elementos para formar convicção e ter posição.
Nesse sentido, não se pode deixar de lado o fato de que tem havido um aumento crescente do registro de armas de fogo no país, desde o advento do Estatuto do Desarmamento. Segundo dados da Polícia Federal:
O total de armas registradas saltou de 3.055, em 2004, para 33.031 no ano passado –981% a mais. Os números mostram ainda que o número de registros de armas cresceu constantemente até 2015, quando atingiu o pico desde o estatuto: 36.807 –1.104% a mais em relação ao primeiro ano de desarmamento. Nos últimos três anos, foram registradas mais de 90 novas armas por dia em média. [3]
Para além desse dado, que revela a permissividade no registro de novas armas ao longo dos últimos anos, há ainda um elemento importante que deve ser trazido à tona: a maioria dos brasileiros se opõe à liberação de armas, segundo pesquisa realizada e divulgada no dia 31 de dezembro de 2018 pelo instituto Datafolha, inclusive com aumento no percentual de pessoas que são favoráveis à restrição à posse de armas na atual legislação: enquanto em outubro 55% se disseram contra a posse de armas, no levantamento de dezembro esse índice aumentou para 61%:
Pesquisa do instituto Datafolha divulgada nesta segunda-feira (31) apontou que 61% dos brasileiros consideram que a posse de armas de fogo deve ser proibida, por representar ameaça à vida de outras pessoas.
Direito à posse significa poder manter uma arma em casa. Para andar com a arma, é preciso ter direito ao porte.
O levantamento foi realizado nos dias 18 e 19 deste mês. Na pesquisa anterior, de outubro, 55% se disseram contra a posse de armas.
O Datafolha ouviu 2.077 pessoas em 130 municípios em todas as regiões do país.
De outubro para dezembro, a parcela de pessoas favoráveis à posse de armas passou de 41% para 37%, no limite da margem de erro, que é de dois pontos percentuais para baixo ou para cima. [4]
Esses dados revelam o equívoco da medida anunciada pelo governo que opta por alijar a população do debate e se baseia em interesses pouco transparentes e sem o necessário respaldo científico para promover uma medida que pode custar muitas vidas humanas e o agravamento de mortes violentas no país. O governo caminha em sentido contrário ao desejo da sociedade.
Tânia Maria Oliveira e Gabriel Sampaio são assessores jurídicos no Senado e membros da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – ABJD
[1] http://www.forumseguranca.org.br/atividades/anuario/
[2] Os principais trabalhos podem ser acessados em: http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=17514; http://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/artigo/28/menos-armas-menos-crimes
[3] Disponível em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2018/09/30/registro-de-armas-de-fogo-policia-federal-estatuto-desarmamento.htm. Acesso 14.01.2019.
[4] Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2018/12/31/para-61-dos-brasileiros-posse-de-armas-de-fogo-deve-ser-proibida-diz-datafolha.ghtml. Acesso 14.01.2019.